A primeira aparição das caixas de papelão passou despercebida. Henrique Dobson Malatesta, ao mudar-se para outra cidade, levou consigo sua mulher, seus filhos e todas as lembranças acumuladas durante os anos, mas deixou para trás em sua casa antiga duas caixas de papelão vazias.
Quando o novo inquilino, Otaviano Serápio de Melo, entrou na sala de seu futuro lar, deparou-se com cinco caixas de papelão. Inspecionou-as, constatou que estavam vazias, mas, por ser um homem de caráter inquestionável, entrou em contato com o agente imobiliário e pediu-lhe o telefone do antigo inquilino. Ligou para o senhor Henrique Malatesta e informou:
- Encontrei algumas caixas de papelão vazias em sua casa antiga. Suponho que o senhor esqueceu-se de levá-las.
Henrique respondeu: - Não as esqueci; abandonei-as.
Atônito, Otaviano perguntou: - Que faço com elas?
Dessa vez, Henrique não respondeu. Desligou.
Otaviano pensou em jogá-las fora, mas, ao olhar para aquelas caixas, decidiu usá-las para guardar as tralhas sem utilidade que sua esposa vinha guardando desde seu casamento. As caixas de papelão ficaram guardadas na garagem até o dia em que as circunstâncias da vida exigiram que a família saísse da casa.
O homem de caráter inquestionável costuma ser, também, intransigente. Sua esposa cansou-se de sua idoneidade; nada mais chato e entediante do que um homem sempre correto, avesso mesmo até a uma pequena malandragem na cama conjugal. Evidentemente, estendia suas exigências éticas e morais a toda a família: o fundamentalismo ético havia transformado o lar em um lugar sóbrio, descontente.
Se – naquele fatídico telefonema – Otaviano tivesse mencionado o número de caixas por ele encontradas, seu destino talvez teria tomado outro rumo. Imagino o seguinte diálogo:
- Encontrei cinco caixas de papelão vazias que o senhor esqueceu em sua antiga casa.
- Cinco, não! Duas!
- Juro que são cinco. Estão aqui, bem na minha frente. Sei contar até cinco, acredite.
Henrique se irrita:
- Está me chamando de mentiroso? Larguei apenas duas caixas naquela maldita casa!
E desliga.
Intrigado, Otaviano, o telefone ainda na mão, olha para as caixas. Não precisa nem contá-las. Dá para ver que são mais de duas. Otaviano não gosta, não acredita em inconsistências. Existe uma explicação lógica para tudo. Começa, então, a investigar, passa a analisar as caixas, observa seu modo de ser, questiona sua natureza, submete-as ao crivo das ciências exatas e humanas.
Não sabemos qual teria sido o resultado dessa extensa análise. Muito provavelmente não teria encontrado uma resposta última, talvez teria sido forçado a aceitar que, em alguns casos, dois é igual a cinco ou que existe sim tal fenômeno da multiplicação milagrosa. Talvez, em decorrência disso, teria questionado algumas outras certezas inabaláveis da sua vida, para tornar-se então um marido e pai um pouco mais suportável.
Sabemos apenas que não foi isso o que aconteceu. Otaviano não se deu conta do milagre que ocorrera em sua casa e – inabalado – seguiu o rumo do destino inevitável daqueles que dogmatizam a ética.
Os encargos financeiros de um divórcio litigioso obrigaram os dois partidos a se refugiarem um do outro em abrigos mais modestos. Ao esvaziar a garagem, Henrique se deparou novamente com as cinco caixas de papelão que encontrara anos atrás: Homem de caráter inquestionável, despejou seu conteúdo (de propriedade exclusiva da ex-mulher) na grama em frente à casa e devolveu as caixas agora vazias ao lugar em que as encontrara.
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